FIBRILAÇÃO ATRIAL (FA)
(CARDIOLOGIA - ARRITMIAS CARDÍACAS)INTRODUÇÃO
A fibrilação atrial (FA) é a arritmia sustentada mais frequente atualmente, com prevalência entre 1 e 2% na população mundial e que tenderá a dobrar com o envelhecimento da população. A FA está associada a uma chance duas vezes maior de mortalidade por cardioembolia, cinco vezes maior de acidente vascular cerebral (AVC) (1 em cada 5 AVCs isquêmicos está relacionado com cardioembolia), piora na função ventricular esquerda e qualidade de vida.
ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA
ETIOLOGIA
A FA está associada a etiologias cardíacas e extracardíacas. Entre as etiologias cardíacas mais frequentes, destacam-se: doença cardíaca hipertensiva, doença coronariana, insuficiência cardíaca e valvopatias (especialmente doença reumática). Entre as causas extracardíacas, as mais comumente relacionadas com FA são obesidade, síndrome metabólica e insuficiência renal crônica.
Deve-se atentar também às causas reversíveis de FA, que terão papel importante na condução do tratamento, como: intoxicação alcoólica (“holiday heart”), hipertireoidismo, pós-operatório (cirurgias cardíacas e extracardíacas) e uso de drogas ilícitas (p. ex., cocaína e crack).
FISIOPATOLOGIA
A fisiopatologia da FA é multifatorial, sendo os principais responsáveis: alterações atriais anatômicas (dilatação e fibrose) secundárias às cardiopatias, remodelamento eletroanatômico secundário à própria FA, gatilhos locais (principalmente em veias pulmonares), microcircuitos de reentrada, rotores e atividade ganglionar parassimpática. Esses fatores associam-se de maneiras e intensidades diferentes de acordo com as etiologias descritas, resultando em FA.
DIAGNÓSTICO
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
O sintoma mais comum é a presença de palpitações arrítmicas, podendo ser de início súbito e acompanhadas de mal-estar. É de extrema importância identificar o início exato da arritmia, pois a FA que se inicia antes de 48 horas permite tentativa de cardioversão química ou elétrica em pacientes com estabilidade clínica.
Dispneia por conta de congestão pulmonar, hipotensão e/ou síncope ocorrem em razão da perda da contração atrial associada à frequência ventricular elevada, comprometendo a diástole ventricular e o débito cardíaco. Ocorrem com maior frequência em pacientes com doença estrutural cardíaca ou valvopatias (especialmente nas estenoses aórtica ou mitral e na cardiomiopatia hipertrófica).
Principais sintomas:
- Palpitações arrítmicas;
- Lipotimia;
- Angina pectoris;
- Dispneia;
- Síncope.
Principais achados no exame físico:
- Pulso irregular;
- Bulhas cardíacas arrítmicas;
- Variação da intensidade da 1ª bulha;
- Discordância entre bulhas cardíacas e pulso arterial;
- Estertor pulmonar se congestão;
- Hipotensão arterial.
EXAMES COMPLEMENTARES
ELETROCARDIOGRAMA (ECG)
O ECG confirma o diagnóstico da FA no departamento de emergência. O estado fibrilatório dos átrios é traduzido no ECG por ausência de onda P, tremor na linha de base e irregularidade do intervalo RR, geralmente estreito por se tratar de arritmia supraventricular (FIGURA).
A frequência ventricular está relacionada à condução intrínseca do nó AV e ao uso de drogas (betabloqueadores, inibidores dos canais de cálcio, digitálicos). O QRS pode estar alargado, na presença de condução aberrante (bloqueio de ramo prévio ou dependente da frequência) ou pré-excitação ventricular.
Na emergência, a FA aguda normalmente manifesta-se com alta resposta ventricular, podendo dificultar a identificação da irregularidade do RR e do tremor da linha de base por conta da proximidade entre os QRS, principalmente em traçados curtos de ECG (FIGURA). Com a realização do D2 longo, há maior chance de se notar a variabilidade do intervalo RR e diagnosticar FA. Persistindo a dúvida, a realização de manobra vagal pode diminuir a condução pelo nó AV e, consequentemente, aumentar o intervalo RR, facilitando a visualização do tremor da linha de base.
EXAMES LABORATORIAIS
TSH
Para pacientes com sintomas sugestivos de hipertireoidismo (sudorese, emagrecimento, tremores de extremidades), deve ser solicitado TSH. O insucesso do restabelecimento do ritmo sinusal e a recorrência da arritmia são maiores nesses pacientes, sendo recomendado primeiro o tratamento da doença de base, para depois realizar a cardioversão, caso o paciente ainda esteja em FA.
CREATININA
Deve ser solicitada caso opte-se por anticoagular o paciente. A medida do clearance de creatinina é fundamental para decidir o melhor anticoagulante e sua respectiva dose. Em pacientes com clearance de creatinina menor que 30 mL/min, está contraindicado o uso de dabigatrana e rivoraxabana, dando-se preferência à varfarina.
TROPONINA
Deve ser solicitada naqueles pacientes que apresentam sintomas anginosos e/ou alterações eletrocardiográficas sugestivas de síndrome coronariana aguda.
PRÓ-BNP
Auxilia no diagnóstico de insuficiência cardíaca e tem implicação prognóstica. Em razão de seu alto valor preditivo negativo, valores abaixo do valor de corte praticamente afastam o diagnóstico de IC associado à FA.
HEMOGRAMA
Auxilia no diagnóstico de infecção e de anemia em pacientes admitidos com FA, podendo o paciente, em ambas as situações, apresentar-se taquicárdico e eventualmente com palpitações. Deve-se ter cuidado em não interpretar o quadro clínico como FA aguda em pacientes com FA persistente ou permanente em vigência de quadro anêmico ou infeccioso.
OUTROS EXAMES
ECOCARDIOGRAMA
Auxilia no diagnóstico de IC e valvopatias, além de medir o tamanho dos átrios; o ecocardiograma transtorácico eventualmente pode auxiliar no diagnóstico de trombos intracavitários, embora não seja o melhor método. Apesar de útil, não deve postergar o início do tratamento da FA na emergência, principalmente em pacientes com instabilidade hemodinâmica.
AVALIAÇÃO DE DISPOSITIVOS CARDÍACOS IMPLANTADOS
Os dispositivos cardíacos (marca-passo, cardiodesfibriladores) são capazes de registrar eventos arrítmicos, podendo auxiliar no diagnóstico do início do episódio agudo de FA e da presença de eventos prévios.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
FLUTTER ATRIAL
Presença de ondas “f” mais bem visualizadas nas derivações inferiores. Pode apresentar condução AV fixa (2:1; 3:1) ou variável.
TAQUICARDIA ATRIAL
Presença de ondas P de mesma morfologia, com frequência elevada, também podendo apresentar condução AV fixa ou variável.
TAQUICARDIA ATRIAL MULTIFOCAL
Comum em pacientes com pneumopatia associada. ECG com ondas P com mais de uma morfologia.
TAQUICARDIA VENTRICULAR
FA de alta frequência e QRS largo pode ser confundida com TV. A análise do intervalo RR e critérios para diferenciação de TSV com aberrância e TV (p. ex., critérios de Brugada) devem ser analisados.
FIBRILAÇÃO ATRIAL PRÉ-EXCITADA
Presente obrigatoriamente em pacientes com via acessória (VA), podendo ocorrer em qualquer idade. ECG com RR irregular, QRS largo e frequência cardíaca pode estar elevada (até 300 bpm), de acordo com velocidade de condução da VA.
TRATAMENTO E MANEJO
Estratégia terapêutica inicial de controle de frequência (exceto naqueles pacientes que necessitem de cardioversão imediata por instabilidade clínica), avaliação da necessidade do uso de anticoagulantes e pesquisa por causas reversíveis de FA devem ser feitas em todos os pacientes.
O próximo passo é a decisão de qual estratégia será utilizada no tratamento dos pacientes: controle de frequência cardíaca (FC) ou de ritmo (cardioversão associada à terapia antiarrítmica). A literatura baseada em evidências, atualmente, chegou à conclusão de que nenhuma das estratégias mostradas é superior a outra, devendo a decisão sobre qual adotar ser individualizada para cada paciente.
Critérios clínicos que favorecem a estratégia de controle de ritmo:
- Instabilidade clínica;
- Sintomas persistentes;
- FA pré-excitada;
- Falha na estratégia de controle de FC;
- Taquicardiomiopatia;
- Primeiro episódio de FA;
- Causa reversível;
- Pacientes jovens em programação de ablação de FA.
CONTROLE DE FC
Pacientes com FA há mais de 48 horas, ou de duração indeterminada, estão expostos a maior risco de cardioembolia e a cardioversão não deveria ser realizada sem a exclusão de trombos em átrio esquerdo (AE) com ecocardiograma transesofágico (ETE) ou anticoagulação por 3 semanas. Enquanto se espera pela realização de ETE ou período seguro de anticoagulação, o controle de FC é indispensável para o controle de sintomas.
Alguns pacientes podem ser portadores de FA permanente, com uma descompensação da FC secundária a outras comorbidades (p. ex., infecção, falta da medicação, anemia etc.). O controle de FC até a correção das causas de descompensação da FA é fundamental no tratamento desses indivíduos.
As drogas a serem utilizadas, assim como a via de administração, para controle da frequência cardíaca devem ser individualizadas de acordo com as comorbidades e o quadro clínico do paciente. As principais recomendações são:
- Betabloqueadores ou bloqueadores de canais de cálcio (verapamil/diltiazem), na ausência de hipotensão, insuficiência cardíaca ou pré-excitação ventricular.
- Amiodarona ou digital IV na insuficiência cardíaca ou hipotensão.
- Na presença de pré-excitação, preferir uso de propafenona ou amiodarona.
- Outros fármacos utilizados na presença de pré-excitação: betabloqueadores, bloqueadores de canais de cálcio (verapamil/diltiazem), digoxina e adenosina.
CONTROLE DO RITMO (CARDIOVERSÃO)
Nos casos em que se optou pelo controle de ritmo, algumas considerações devem ser levadas em conta, como a exclusão de hipertireoidismo, situação em que a cardioversão não deveria ser tentada, pelos seus riscos e chance de recidiva.
MOMENTO DA CARDIOVERSÃO
Nos pacientes com instabilidade clínica (isquemia cardíaca, hipotensão/hipoperfusão ou insuficiência cardíaca), cardioversão elétrica imediata deve ser realizada.
Pacientes com FA há mais de 48 h ou de tempo indeterminado, ou que tenham características de alto risco, como prótese valvar, doença valvar reumática, AVE ou ataque isquêmico transitório recentes, e que não estejam em uso adequado de anticoagulantes (antagonistas da vitamina K com INR entre 2-3 por 3 semanas ou uso dos novos anticoagulantes com aderência estrita), têm maior risco de cardioembolia, devendo a cardioversão ser realizada somente após realização de ETE para excluir trombos em AE ou após três semanas de anticoagulação efetiva.
Pacientes com FA com menos de 48 h podem ser submetidos a cardioversão no momento da avaliação.
ANTICOAGULAÇÃO
FA COM DURAÇÃO MAIOR QUE 48 HORAS
Como dito anteriormente, pode ser necessária anticoagulação por 3 semanas antes da cardioversão. Após cardioversão, anticoagulação deve ser mantida por no mínimo 4 semanas, independentemente do risco de cardioembolia. Após tal período, a decisão de manter anticoagulação deve ser tomada com base no risco individual, baseada no escore CHA2DS2 -VASc (FIGURA), no qual pacientes com escore ≥ 2 devem ser anticoagulados, exceto se houver contraindicações.
FA COM DURAÇÃO MENOR QUE 48 HORAS
Embora o risco de cardioembolia seja baixo nesse subgrupo de pacientes, recentemente tem-se recomendado anticoagulação antes da cardioversão nos pacientes com alto risco de cardioembolia (CHA2DS2-VASc, estenose mitral, prótese valvar, cardioembolia prévia). A decisão de manter a anticoagulação após cardioversão deve ser baseada no tipo de FA e risco de cardioembolia.
ESCORE CHA2DS2-VASc | |
Fatores de Risco | Pontuação |
Insuficiência cardíaca | 1 |
HAS | 1 |
Idade > 75 anos | 2 |
Diabetes mellitus | 1 |
AVC/AIT/tromboembolismo prévio | 2 |
Doença vascular | 1 |
Idade 65-74 anos | 1 |
Sexo feminino | 1 |
CARDIOVERSÃO QUÍMICA x ELÉTRICA
Pacientes com instabilidade clínica importante devem ser submetidos a CV elétrica imediata. Nos pacientes estáveis em que se optou pela reversão do ritmo, a experiência médica, o quadro clínico e a preferência dos pacientes devem ser levados em conta para decidir qual método utilizar.
CARDIOVERSÃO QUÍMICA
Vantagens:
- Não necessita de sedação anestésica para sua realização, o que pode ser importante em pacientes graves, em que o risco de sedação é maior que o benefício da cardioversão.
- Em caso de tentativa previamente à cardioversão elétrica, os antiarrítmicos podem aumentar a chance de reversão do choque.
Desvantagens:
- Menos eficaz que CV elétrica.
- Algumas drogas, como propafenona e amiodarona podem organizar a FA em flutter atrial de frequência mais lenta, permitindo uma condução 1:1 no nó AV, o que pode levar a altas frequências ventriculares e instabilidade clínica. Tal fato pode ser evitado utilizando-se um fármaco que alenteça o nó AV (p. ex., betabloqueadores, verapamil e diltiazem).
CARDIOVERSÃO ELÉTRICA
Vantagens:
- Maior chance de reversão para ritmo sinusal.
- Pré-tratamento com fármacos antiarrítmicos aumenta chance de reversão e manutenção do ritmo após cardioversão.
- Segura e com poucas complicações, geralmente é o método mais utilizado.
Desvantagens:
- Necessita de jejum.
- Sedação anestésica profunda.
- Pode apresentar bradicardias após reversão, principalmente em pacientes com disfunção do nó sinusal e/ou atrioventricular.
- Alta taxa de recidiva se não for utilizado fármaco antiarrítmico de manutenção após o procedimento.
ALGORITMO
REFERÊNCIAS
MARTINS, HS; SANTOS, RA; NETO, RAB; ARNAUD, F. Medicina de Emergência: Revisão Rápida. 1ª Ed. São Paulo: Manole, 2017.
MARTINS, HS; NETO, RAB; VELASCO, IT. Medicina de Emergência: Abordagem Prática. 11ª ed. São Paulo: Manole, 2016.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Protocolos de Intervenção para o SAMU 192 - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Brasília: Ministério da Saúde, 2ª edição, 2016.