USO DE DROGAS E DEPENDÊNCIA
(PSIQUIATRIA - TRANSTORNOS RELACIONADOS AO USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS)INTRODUÇÃO
INTOXICAÇÃO
Síndrome reversível específica à substância, causada pela sua recente ingestão. É caracterizada por alterações comportamentais ou psicológicas clinicamente significativas e mal-adaptativas devido ao efeito da substância sobre o SNC (por ex., beligerância, instabilidade do humor, prejuízo cognitivo, comprometimento da memória, prejuízo no funcionamento social ou ocupacional) e outros sistemas do organismo
ABSTINÊNCIA
Desenvolvimento de uma síndrome específica à substância devido à cessação (ou redução) do uso pesado e prolongado. Essa síndrome causa sofrimento ou prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo
PADRÃO DE USO
O padrão de uso pode ser classificado como:
- Experimental: uso inicial, infrequente e esporádico de determinada droga;
- Recreativo: uso em situações sociais ou de relaxamento, sem consequências negativas;
- Uso frequente: consumo regular, não compulsivo, que não traz prejuízos significativos para o funcionamento do indivíduo;
- Abuso/uso nocivo: consumo continuado que traz algum prejuízo para o usuário, como problemas legais, físicos ou mentais;
- Dependência: uso continuado caracterizado por tolerância, sintomas de abstinência, compulsão, entre outros critérios.
USO NOCIVO X DEPENDÊNCIA
CRITÉRIOS PARA USO NOCIVO (CID10)
→ O diagnóstico requer que um dano real tenha sido causado à saúde física e mental do usuário.
→ Padrões nocivos de uso são frequentemente criticados por outras pessoas e estão associados a consequências sociais diversas de vários tipos. O fato de um padrão de uso ou de uma substância em particular não serem aprovados por outra pessoa, pela cultura ou por ter levado a consequências socialmente negativas, tais como prisão ou brigas conjugais, não é por si evidência de uso nocivo.
→ O uso nocivo não deve ser diagnosticado se a síndrome de dependência, um transtorno psicótico ou outra forma específica de transtorno relacionada ao uso de drogas ou álcool, estiver presente.
CRITÉRIOS DE DEPENDÊNCIA (CID10)
O diagnóstico de dependência deve ser feito se três ou mais dos seguintes itens foram experimentados ou manifestados durante o ano anterior:
→ Um desejo forte ou senso de compulsão para consumir a substância.
→ Dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância em termos de início, término ou níveis de consumo.
→ Estado de abstinência fisiológica quando o uso da substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por síndrome de abstinência característica para a substância, ou por uso da mesma substância (ou de uma intimamente relacionada) com a intenção de aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.
→ Evidência de tolerância, de tal forma que doses crescentes da substância psicoativa são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas.
→ Abandono progressivo de prazeres alternativos em favor do uso da substância psicoativa: aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou tomar a substância ou recuperar-se de seus efeitos.
→ Persistência no uso da substância, a despeito de evidência clara de consequências manifestamente nocivas, tais como dano ao fígado por consumo excessivo de bebidas alcoólicas, estados de humor depressivos decorrentes de períodos de consumo excessivo.
IMPULSIVIDADE E COMPULSIVIDADE
IMPULSIVIDADE
→ Tendência a atuar prematuramente sem previsão.
→ O circuito que estimula a impulsividade é uma alça com projeções do estriado ventral para o tálamo, do tálamo para o córtex pré-frontal ventromedial (CPFVM), e do CPFVM de volta ao estriado.
→ O circuito costuma ser modulado a partir do córtex pré-frontal. Se esse sistema de inibição for inadequado podem ocorrer comportamentos impulsivos.
COMPULSIVIDADE
→ Comportamento resultando em perseveração de respostas diante de consequências adversas.
→ O circuito que estimula a compulsão é uma alça com projeções do estriado dorsal para o tálamo, do tálamo para o córtex orbitofrontal (COF) e do COF de volta para o estriado dorsal.
→ Este circuito pode ser modulado a partir do COF. Se esse sistema de inibição for inadequado podem ocorrer comportamentos compulsivos.
SISTEMA DE RECOMPENSA
As principais vias desse sistema são a mesolímbica e a mesocortical. A via mesolímbica compreende a área tegmentar ventral que projeta neurônios ao núcleo accumbens (NA) no sistema límbico. Outras inúmeras projeções da amígdala, do córtex pré-frontal e do hipocampo chegam ao NA, que desempenha importante papel na regulação da emoção, motivação e cognição. O principal neurotransmissor liberado nesse sistema é a dopamina. Apesar de as drogas psicoativas terem diferentes mecanismos de ação, quase todas levam a um aumento de dopamina na via mesolímbica, de maneira direta ou indireta.
A liberação de dopamina repetidamente leva ao aprendizado do comportamento de obtenção e uso da droga. Esse comportamento passa a ser associado a diversos estímulos que antes eram neutros.
CIRCUITOS MEDIADORES DE ESTRESSE
O sistema hipotalâmico-pituitário-adrenal (circuito de estresse) é ativado na ausência das drogas psicoativas e se relaciona com o desenvolvimento dos sintomas de abstinência e recaídas, inclusive os estados aversivos e ansiosos.
Durante a abstinência, encontramos um aumento de corticosterona, hormônio adrenocorticotrófico e fator liberador de corticotropina (CRF) na amígdala.
ANFETAMINAS
→ Uso médico: d-anfetamina, metanfetamina, fenfluramina, metilfenidato, pemolide, femproporex, manzidol, anfepramona
→ Uso não médico: ecstasy, ice, crystal.
EPIDEMIOLOGIA
→ estimulantes anorexígenos apresenta nítido predomínio no sexo feminino.
FARMACOLOGIA
→ a administração dessas substâncias faz aumentar os níveis de monoaminas na fenda sináptica por meio de um incremento da sua liberação.
→ efeitos psicoestimulantes são observados de 20 a 60min após ingestão e persistem por até 4h.
INTOXICAÇÃO
→ efeitos incluem a sensação de estimulação mental, calor emocional, empatia para com os outros, sensação de bem-estar, diminuição da ansiedade e relato de maior percepção sensorial.
→ Existem efeitos adversos que podem se prolongar por uma semana ou mais: ansiedade, inquietação, irritabilidade, tristeza, impulsividade, agressividade, distúrbios do sono, depressão, falta de apetite, sede, redução do interesse e do prazer sexual e diminuição das habilidades mentais.
DEPENDÊNCIA
→ O ecstasy tem potencial de dependência.
→ Quase 60% relatam sintomas de abstinência, incluindo fadiga, perda de apetite, depressão e dificuldade de concentração.
INALANTES
→ Esses solventes ou inalantes são substâncias pertencentes a um grupo químico chamado hidrocarbonetos, como o tolueno, xilol, n-hexano, acetato de etila, tricloroetileno.
→ Solventes voláteis: corretivos, colas, removedores (de esmalte, tinta); aerossóis: desodorantes, laquês, lança perfume; gases: propano, fluido de isqueiro; nitratos.
EPIDEMIOLOGIA
→ Maior no sexo masculino.
→ Fatores de risco: marginalização, problemas familiares, história de violência ou abuso, influẽncia de pessoas próximas.
FARMACOLOGIA
→ Efeitos da exposição ao tolueno são sugestivos de alterações no funcionamento dos receptores NMDA e GABA.
INTOXICAÇÃO
→ A maioria produz sintomas que se assemelham ao da intoxicação por álcool, com excitação inicial, seguida de sonolência, desinibição, vertigens e agitação.
→ Quando quantidades maiores são inaladas produzem efeito de anestesia e rebaixamento do nível de consciência
→ Uso crônico produz danos à bainha de mielina, semelhante a esclerose múltipla.
→ Usuários de inalantes apresentam também altas taxas de transtornos do humor (48%), de ansiedade (36%) e de personalidade ( 45%) ao longo da vida.
MACONHA
EPIDEMIOLOGIA
→ Droga ilícita mais consumida na maioria dos países.
→ 129 e 190 milhões de usuários no mundo.
FARMACOLOGIA
→ Os canabinóides inibem a atividade da adenilatociclase centralmente.
→ Receptores canabinoides estão localizados nos núcleos da base e cerebelo (descoordenação motora), no hipocampo (levando a alteração de memória), córtex frontal (tomada de decisões, habilidades sociais, levaria à euforia) e núcleo acumbens (sistema de recompensa prazerosa).
INTOXICAÇÃO
→ É associada à sensação de bem-estar, relaxamento, euforia, aumento da fluência verbal, exacerbação de sentidos como o tato, olfato e paladar, aumento da acuidade e relevância a estímulos visuais, sensação de lentificação do tempo e risos.
→ Sintomas ansiosos, prejuízos da atenção, da memória de curto prazo e da concentração, redução da força muscular e perda de coordenação motora fina, ideação delirante paranoide, alucinações auditivas, conjuntivas congestas e aumento do apetite são os possíveis efeitos adversos.
DEPENDÊNCIA
→ Estudos clínicos em humanos encontraram evidências de que a interrupção do uso frequente da maconha pode desencadear síndrome de abstinência, caracterizada por alterações emocionais, mudança do padrão de apetite, perda de peso, alterações do sono e desconforto físico
COCAÍNA
EPIDEMIOLOGIA
→ Taxa de 2,9% para cocaína e 0,7% para o crack.
→ O uso está concentrado na população do sexo masculino na faixa etária dos 25 aos 34 anos.
→ Maior prevalência nas capitais.
FARMACOLOGIA
→ Liga-se ao receptor dopaminérgico e diminui a recaptação da dopamina.
INTOXICAÇÃO
→ Pequenas doses de cocaína propiciam aos usuários sensação de euforia, energia, fluência verbal, maior sensibilidade para visão, tato e audição e podem diminuir temporariamente a necessidade de comer e dormir.
→ Os efeitos físicos incluem vasoconstrição, dilatação pupilar, aumento da temperatura corporal, aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial.
DEPENDÊNCIA
→ Vias pulmonares e endovenosa produzem aumento abrupto da dopamina e tem efeito reforçador maior (crack).
→ Após cessação do uso é comum aparecimento de anedonia e fissura.
→ Em geral, são descritas depressão intensa, fadiga, ideação suicida eventual, disforia e dificuldade de sono.
COMPLICAÇÕES CLÍNICAS
→ Lesões na mucosa nasal, IAM, arritmia, cefaleia, convulsões...
→ Crack pode estar associado a lesões pulmonares, fibrose, enfisema…
OPIOIDES
→ Inclui todas as substâncias naturais, semissintéticas ou sintéticas que reagem com os receptores opioides, quer como agonista ou antagonista
EPIDEMIOLOGIA
→ Os mais sujeitos a abuso são heroína, ópio e opioides prescritos
→ Baixa prevalência no Brasil
FARMACOLOGIA
→ Atuam em receptores localizados no sistema nervoso central e em órgãos periféricos, estando a maioria no TGI.
→ Mu subtipo 1: euforia, analgesia e depressão respiratória;
→ Mu subtipo 2: gastrointestinal;
→ Kappa: analgesia, sedação, miose, sintomas psicomiméticos, desrealização, despersonalização;
→ Delta: analgesia;
→ Épsilon: sedação;
→ Sigma: ação antitussígena, alteração de humor e quadros alucinógenos.
INTOXICAÇÃO
→ Pode levar aos seguintes sintomas: analgesia, euforia ou disforia, calor, rubor facial, coceira na face, boca seca, miose, constipação, sonolência, depressão respiratória, arreflexia, hipotensão e taquicardia.
DEPENDÊNCIA
→ A dependência física de opioides se desenvolve rapidamente e sua interrupção abrupta pode causar sinais e sintomas que em geral correspondem ao efeito oposto dos agonistas
TRATAMENTO
SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA (HCFUSP)
→ Definição de síndrome de abstinência:
- Midríase;
- 10 mmHg de aumento na PA sistólica;
- 10 bpm de aumento na FC;
- Sudorese, calafrios, suspiros, dor no corpo, diarreia, rinorreia e lacrimejamento.
→ Se o paciente preencher pelo menos dois dos critérios, recebe 10 mg de metadona. Seus parâmetros são então checados a cada quatro horas; ele receberá mais 10 mg se apresentar pelo menos dois dos critérios. A dose total das primeiras 24 horas é dividida em duas no segundo dia e reduzida a 5 mg por dia até a retirada. Após a última dose de metadona, a clonidina é iniciada.
FASE DE MANUTENÇÃO
→ Antagonistas opioides (naltrexona), impedem o usuário de experimentar o efeito prazeroso e reforçador do uso de opioide.
→ Agonistas opioide (metadona), suprimem melhor a fissura e os sintomas de abstinência.
→ Clonidina, alivia os sintomas adrenérgicos da síndrome.
→ Terapias psicoeducativa e cognitivo-comportamental.
SINTOMAS DE ABSTINÊNCIA
→ Leve a moderado: perda de apetite, ansiedade, fissura, disforia, fadiga, cefaleia, ↑FR, irritabilidade, lacrimejamento, midríase, sudorese, piloereção, rinorreia, bocejos.
→ Moderado a grave: dores abdominais, sono perturbado, ímpetos de frio ou calor, ↑PA, ↑FC, febre baixa, dores musculares, espasmos musculares, náuseas e vômitos.
TRATAMENTO PSICOTERÁPICO
Avaliação do estágio de motivação do paciente:
(1) Pré-contemplação: o indivíduo não considera a mudança.
(2) Contemplação: analisa de modo ambivalente a mudança.
(3) Preparação: considera a mudança necessária.
(4) Ação: começa o processo, pode apresentar sintomas de abstinência ou fissura.
(5) Manutenção: se envolve em estratégias previamente planejadas e as remodela de acordo com suas necessidades.
(6) Recaída: parte normal do processo; retornam a algum dos estágios anteriores para novamente evoluir
Princípios básicos da entrevista motivacional:
(1) Expressar empatia.
(2) Evidenciar a discrepância entre o comportamento atual do paciente e o que ele relata como meta e desejo.
(3) Evitar discussões e confrontos.
(4) Fluir com a resistência.
(5) Estimular a autoeficácia (habilidade executar uma tarefa).
Prevenção de recaída: “ensinar” o indivíduo a reconhecer quais são as situações emocionais, cognitivas e ambientais que desencadeiam a vontade e o uso da substância.
Terapia cognitivo-comportamental: modificar padrões de pensamentos e comportamentos mal-adaptativos.
Ajustamento familiar: apoio para mudança, estabelecimento de regras e deve ser orientada quanto aos sinais precoces de recaída e aos limites a serem dados ao paciente.
PREVENÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS
PREVENÇÃO PRIMÁRIA
Conjunto e ações que procuram evitar a ocorrência de novos casos ou até mesmo um primeiro uso. Importante conhecer e respeitar as características e as necessidades da comunidade na qual se pretende atuar.
PREVENÇÃO SECUNDÁRIA
Conjunto de ações que procuram evitar a ocorrência de complicações para as pessoas que fazem uso ocasional de drogas e que apresentam um nível relativamente baixo de problemas. Campanhas publicitárias é um exemplo.
PREVENÇÃO TERCIÁRIA
Conjunto de ações que, a partir de um problema existente, procura evitar prejuízos adicionais e/ ou reintegrar à sociedade os indivíduos com problemas sérios. Também busca melhorar a qualidade de vida dos usuários junto à família, ao trabalho e à comunidade de modo geral.
MODELO DE REDUÇÃO DE DANOS
A tradicional dicotomia do "tudo ou nada” que tem a total abstinência como meta necessária para a abordagem do usuário, vem sendo substituída por uma visão mais pragmática: "se você não consegue parar de usar, use da maneira menos danosa possível”.
REFERÊNCIAS
Organização Mundial da Saúde, OMS. Classificação de Transtornos mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas - Coord, Organização Mundial da Saúde. Porto Alegre: Artmed, 1993.
Sadock, BJ. Sadock, VA. Ruiz, P. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 11ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.